Era uma vez o escroto e a histérica

essabiamesmo
4 min readJan 12, 2019

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Numa sociedade de escrotos e histéricas, quem tem bom senso é rei e rainha (será?).

Histeria é uma palavra carregada de significado: vem do grego e é derivada de hystéra, útero. Nasceu para descrever a loucura tipicamente feminina, o exagero, o chilique, um estado de espírito que parecia total e completamente limitado à mulher. Até 1900 e bolinha, o termo estava em alta na comunidade médica na tentativa de entender uma “doença orgânica de origem uterina”. Diversos sintomas físicos combinados com neuroses eram descritas como histeria e estudadas inclusive pelo Freud. Mulheres insistiam em ter ansiedade, em questionar, em se desestruturar de uma forma muito específica e feminina.

Histeria era curada, em muitos casos, com “a cura do descanso”, que consistiu basicamente em zerar estímulos para reduzir ansiedade. Em outras palavras, a cura é colocar a mulher de cama até ela parar de manifestar sintoma. Existe um conto muito bom escrito em 1892 chamado “Yellow Wallpaper”, que narra do ponto de vista da paciente como ela vai reagindo (e, lentamente, enlouquecendo) ao tratamento. Outra opção era o “paroxismo histérico”, hoje conhecido como orgasmo: o estímulo clitorial levava a mulher ao ápice e gerava alívio, curando temporariamente a histeria. Médicos masturbavam as pacientes no consultório como tratamento, remédio popular e aprovado.

Completando a bela imagem que era o tratamento da saúde psíquica e sexual da mulher até o século XX, um problema assolou a comunidade médica: lesão por esforço repetitivo. Massagem clitoral contínua era a “cura” para as mulheres histéricas e a causa da tendinite nos médicos. Para resolver o problema, desenvolveram um masturbador mecânico, e assim nasceu o vibrador.

O vibrador só foi erotizado e, tal qual a sexualidade feminina, reprimido e forçado para o segredo, quando começaram a utilizá-lo na pornografia. Até então, o aparato era visto como um tratamento caseiro para um estado de espírito, mas com sua erotização e associação com o prazer sexual feminino, o vibrador perdeu o espaço mainstream e passou a ser abominado. Histeria, em paralelo, só deixou de ser listado como doença em 1952.

Dentro desse contexto histórico e linguístico, histeria é uma palavra problemática. Intrinsecamente associada à mulher, ao exagero e ao emocional que faz parte do estereótipo feminino. Antes de nascer e receber um nome, a mulher já tem toda a expectativa de comportamento ao redor desse tipo de papel. Enquanto isso, o homem está em algum lugar bem distante da definição sentimental e exagerada feminina.

“Escroto”, de acordo com o dicionário, significa uma “palavra-ônibus que denota más qualidades como: que, quem ou o que é feio, mau, não confiável, mesquinho, mal-educado, negligente, vil, torpe etc.”. Além disso, escroto é “o saco musculocutâneo que contém os testículos e os epidídimos”, parte da genital tradicionalmente masculina. Assim como a histeria é associada desde a etimologia ao feminino, ao útero, escroto é associado ao masculino. Histeria aparece em diversas línguas com a mesma etimologia; escroto, em particular no inglês, tem o equivalente “dick”: apelido para pênis e também para uma pessoa que seja grossa, estúpida ou similares.

Em uma sociedade com papéis de gênero socialmente definidos, palavras como “histérica” e “escroto” são bem representativas do que esperamos de mulheres e homens. A mulher é excessivamente emocional, descontrolada, com ansiedades e tensões desprendidas da realidade. O homem é sem noção, insensível, sem preocupação com o próximo. O homem vai falar de forma estúpida e a mulher vai reagir de forma descabida.

A histérica e o escroto são personagens. Eles não precisam ser reais em nível individual, mas se acreditamos e os propagamos como sociedade, eles nem precisam ser. Eu, mulher, sou histérica. Independentemente da forma que eu agir ou reagir, será uma forma de histeria, porque eu sou mulher. O homem está no seu espaço de ser escroto: com toda expectativa de masculinidade, ele fica preso ao modelo sem noção e sem sentimento, refém da própria grossura e estupidez. Masculinidade tóxica é um conceito ligado ao papel de gênero masculino atual, e vale ser estudada para entender, no fim do dia, o que culmina o “escroto” tanto para o homem quanto pra mulher.

Seguindo na loucura da ideologia do gênero, criticam o ensino nas escolas que seja menos preso nos papéis sociais de menino e menina. Falar que menina veste rosa e menino veste azul é uma forma simplista de falar que tudo que esperamos de homens e mulheres deve continuar da mesma forma e não se flexibilizar. A mulher deve continuar de rosa, esposa, mãe e histérica, e o homem deve continuar de azul, marido, provedor e escroto. Histérica e escroto são a ponta do iceberg de tudo que se constrói ao redor do feminino e masculino.

Em uma sociedade em que esperamos criar histéricas e escrotos, bom senso não tem gênero (e nem lugar).

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essabiamesmo

Se distrai fácil, e escreve ficção e não-ficção sobre essas distrações. Pesquisa cultura e fala groselha em partes iguais.